sábado, 4 de setembro de 2010

RUMO A 2014: ROBERTO DA MATTA FALA DE FUTEBOL


Grande estudioso da sociedade brasileira, DaMatta (foto acima) acredita que a Copa seja uma oportunidade para se discutir como o futebol pode representar um instrumento de educação para um mundo mais democrático.

1. Por que o futebol é tão forte no Brasil? Qual o sentido contido na denominação do Brasil como “País do Futebol”?

O futebol exprime um elo positivo com o mundo moderno, o universo da Inglaterra das fábricas, dos bancos, do liberalismo e do Parlamento e, quanto mais não seja, do velho colonialismo porque os nossos descobridores portugueses foram dela seus protegidos e por ela colonizados. Neste contexto marcado pela ideia de que o mundo tem países adiantados e atrasados, o que corresponderia a raças superiores e brancas e as inferiores e negativas como as mestiças, o domínio do futebol que foi inventado na Inglaterra pelo Brasil é algo extraordinário. A excelência futebolística do Brasil, demonstrada nas primeiras décadas do século passado, desmente um monte de mitos e, naturalmente, forma outros. O ponto positivo foi que o futebol mostra que o colonialismo e a espoliação não são fatos totais. Os ingleses aqui chegavam e mandavam, mas perdiam no futebol que nós, mulatos preguiçosos, deles tiramos. Todas as teorias mais banais do imperialismo são desmentidas pelo futebol que veio de fora e foi por nós assimilado e desenvolvido com contribuições únicas em termos de estilo, jogadores, jogadas e excelência. Superamos nossos mestres que, quando eu era menino, eram tomados como imbatíveis e inimitáveis. A força do futebol entre nós tem, pois, essa associação com o positivo, com a civilidade e com a excelência diante do mundo que era muito rara entre nós. Nenhuma atividade teve o dom de nos proporcionar uma tão poderosa auto-estima quanto o futebol.

2. De que maneira o estudo do futebol como manifestação brasileira ajuda a entender o nosso país?

Ajuda a compreender como uma manifestação que veio de fora e tornou-se um elemento integrado na nossa paisagem social e mental. Ora, se pudemos fazer isso com o futebol, porque não podemos realizá-la na política, no ensino, e em outras áreas da vida? Sua pergunta mostra como o futebol virou um esporte brasileiro, ele que foi um esporte bretão.

3. O senhor poderia explicar a ideia de que o futebol proporciona à nossa sociedade uma experiência de igualdade e justiça social?

O futebol ensinou ao brasileiro que para existir esporte, disputa e competição é preciso haver um mercado de times ou de clubes que tenham feito um acordo sobre regras. Não foi por acaso, como eu digo no meu livrinho, A bola corre mais que os homens, que o esporte foi inventado na Inglaterra. A Inglaterra foi o país que inventou o liberalismo. Essas regras constitucionais, centrais que deveriam ser seguidas por todos: nobres e plebeus, burgueses e pobres. Até o rei tinha que obedecê-las. O esporte, como eu digo nos meus ensaios, é uma versão positiva e idealizada do mercado, da competição e da disputa. No esporte, controla-se mais e melhor quem é o mais apto e o mais competente. Os elementos de sorte ou azar, que fazem parte de todas as atividades humanas, são controladas. A ênfase no desempenho, no modo de jogar é absoluta. O adversário não pode ser visto como inimigo, pois o vitorioso precisa — no esporte — do derrotado para aceitar e legitimar a sua vitória. Se na vida matamos o inimigo, no esporte ele é cultivado, pois terá uma outra oportunidade no próximo jogo ou campeonato. Ademais, o futebol ensinou ao povo brasileiro, que vivia numa sociedade de senhores e escravos e até hoje vive num universo social de superiores e inferiores, que no campo e no jogo todos são iguais perante as regras que não podem mudar no seu decorrer (como ocorre na política) e que tem que ser por todos seguidas (diferentemente do que se sabe quando nos defrontamos com um sujeito rico ou do governo). Ao lado disso, o futebol oferece às massas, antigamente destituídas de tudo, a identificação com grupos vitoriosos. Ele produz uma relação prazerosa e vitoriosa em vidas que jamais viram o gozo ou a superioridade.

4. O senhor acredita que a realização da Copa de 2014 aqui reafirma de alguma maneira o caráter de potência do futebol ou a proximidade deste evento com os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro relativiza este espírito “monoesportivo”?

Sem nenhuma dúvida. Eu penso que isso vai nos possibilitar uma vivência muito positiva do Brasil e de uma brasilidade nova: mais igualitária, mais cidadã e mais orgulhosa. Se, devo acrescentar, soubermos discutir o que o esporte e o futebol podem representar como instrumentos de educação para um mundo mais democrático.

5. De que modo a nossa diversidade cultural pode servir como recurso para a construção do produto turístico brasileiro?

O que chamamos de diversidade cultural não passa, mais das vezes, de tolerância com bolsões de miséria, ignorância e ausência de educação. O esporte aproxima pela igualdade, pela capacidade de disputar e poder vencer seguindo regras e respeitando o adversário, o que é novo em sociedades como a nossa. Essa aceitação do outro, essa possibilidade de jogar como se quer, como se pode ou se gosta, é uma virtude esportiva. Ela torna as pessoas diferentes, mais iguais no campo. Ela obriga a aceitar a derrota e a não tripudiar na vitória. Penso que são esses temas que devemos explorar para construir uma imagem positiva do Brasil. Pois pela nossa experiência de sociedade com escravos negros que tem preconceito mas não teve segregação, nós temos construído um sistema mais justo e igualitário e isso pode ser acelerado pelo esporte.

6. Em mais uma Copa a seleção brasileira entrará em campo com muitos jogadores que vêm atuando em outros países. Como o senhor analisa o possível conflito de identidade de um craque internacional jogando pelo seu país?

Não há o conflito. O jogador joga para o time e o contexto do jogo é muito importante. Todo mundo com a cabeça no lugar distingue uma pelada de uma Copa do Mundo. Um profissional sabe que, numa Copa, ele se valoriza na medida mesma em que, sendo um jogador cosmopolita e internacionalmente conhecido, ele joga com amor pelo seu país. Num mundo globalizado é preciso aprender a ser nacional e internacional. Falar inglês bem não nos faz traidores do português, nos faz mais competentes.

7. O senhor acredita que a escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014 está relacionada ao caráter emergente que o País vive no cenário econômico mundial? Em que medida a imagem do Brasil difundida por meio da Copa influencia esta percepção?

Há uma relação entre o sucesso econômico brasileiro e o fato de o País ser mais liberal e democrático, ou seja: mais tolerante e capaz de resolver seus conflitos políticos internos sem golpes, violência e crise institucional; bem como a nossa atitude de consistência relativamente a moeda e investimentos, com essas escolhas. São oportunidades de confirmar uma certa trajetória, melhorando o nosso desempenho.

8. Quais são as suas expectativas para a Copa de 2014 no Brasil?

Que sejamos campeões.

9. Torce para que time, por que o escolheu?

Sou Fluminense e isso é uma longa história que começou em São João Nepomuceno, Minas Gerais, em 1947.

10. Costuma ir a estádios? Lembra-se da 1ª vez em que esteve num estádio, como foi?

Sim. Foi no Maracanã em 1950, na Copa. Assisti com meu saudoso e amado pai e meus irmãos ao jogo Brasil e Iugoslávia, que hoje não mais existe como país. Falar disso equivale a realizar um exercício de memória muito emotivo e imenso.

11. Existe um momento inesquecível em suas lembranças de futebol que gostaria de reviver? Poderia descrevê-lo?

A sensação que tenho quando chego num estádio e vejo o campo verde, bem marcado de linhas brancas; o povo entrando cheio de expectativas. Em seguida, a emoção da entrada dos times e dos juízes. E, finalmente, o início do jogo. Isso me toca profundamente o coração. É o espírito humano inventando o mundo novamente; é o amor sendo posto em prática pelo companheirismo; é o respeito pelo que somos pois tudo termina e, quem sabe, começa novamente de uma outra forma. Meu interesse pelo esporte é idêntico ao que tenho pelo teatro e pela música, pela literatura em geral. Que emoção abrir as páginas de um novo livro e entrar no seu jogo. Saber que aquilo que estou prestes a ver tem um início, um meio e um fim.



Um dos mais importantes antropólogos contemporâneos do País, Roberto DaMatta é um grande estudioso do Brasil. Mestre e doutor pela Universidade de Harvard, foi chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional e coordenador de seu Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. É professor emérito da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, onde ocupou a cátedra Reverendo Edmund Joyce de Antropologia, de 1987 a 2004. Entre seus livros publicados, está
A bola corre mais que os homens: duas Copas, de 2006.


Do site: www.copa2014.turismo.gov.br

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